Pegos brincando
de ser Deus

Por Edmar Bulla

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Narciso, Caravaggio

Se o excesso de comida nos leva à fartura, sua falta dispara em nosso cérebro comandos ancestrais de sobrevivência. Mas hoje, caça, coleta, cultivo da terra e domesticação animal foram reduzidos a uma ida ao supermercado ou ao aplicativo. 

 

Somos animais conectados que temem sucumbir à morte pela fome. Isolamento, quarentena e pandemia são gatilhos de medo que nos advertem para manter o caro metabolismo da vida funcionando. Precisamos viver, mas… e se faltar comida!? Emotivos, corremos às compras, abastecemos a despensa, entupimos a geladeira e, por um dia ou dois, nos convencemos a não desfalecer.

 

Um filé grelhado marca nossa evolução mais do que possamos imaginar. Cozinhar nos manteve vivos, saudáveis e mais inteligentes. No entanto, mesmo passados 160 mil anos, códigos de comportamentos caçador e coletor estão ainda impregnados em nossos genes e cérebro. Esse aparato embutido na caixa craniana mantém ativo um complexo sistema de estímulo e recompensa; uma batalha interminável povoada por dopamina, serotonina, norepinefrina… E comida! Olha ela de novo!

 

Entre estímulo e recompensa estão os hábitos reprogramados pelo Covid-19. Compartilhamos fotos de gôndolas vazias, símbolos do inconsciente coletivo do medo da fome: falta álcool, falta papel higiênico, falta feijão! Mas não falta, só não demos tempo de serem repostos. Incapazes de caçar, coletar e cultivar, a esperança está no supermercado. E a imagem da prateleira vazia é um desserviço, pois cria a insensatez da estocagem, que desequilibra toda a cadeia de abastecimento e expõe seres humanos. Não nos cabe mais esse instinto egoísta de autopreservação. É preciso recalibrar as emoções e educar é o melhor caminho. Não morreremos de fome pelo vírus, mas podemos sucumbir à peste da ignorância.

 

Fome é fome. Vírus é vírus. Estamos ressignificando o alimento e uma das nossas atividades mais básicas: comer. O Covid-19 ataca os pulmões, mas também faz refletir sobre a importância do Outro para nutrir a alma e, para nutrir o corpo, sobre como comemos, compramos alimento e cozinhamos. O vírus não consome o alimento, mas a nossa fantasia imaginária de onipotência. 

 

A comida, contudo, é a matéria que impulsionará alterações dos rituais de consumo nos próximos meses, porque não fomos programados, como sapiens modernos, a lidar com a fome; e como capitalistas fomos educados a rejeitar o que não é sucesso. Como se não bastasse, nós, os habitantes do mundo virtual, preferimos mais os likes à qualidade do afeto. Caímos em nossa própria armadilha! E foi necessário um vírus para espirrar em nossa cara o quanto somos vulneráveis.

 

Corpos, mentes e cérebros na era do design inteligente sucumbem ao pavor do risco à sobrevivência da espécie. Somos chamados a resgatar a interação social que nos define como humanos, mas agora valorando a presença pela ausência. Uma educação dolorosa que aponta a colaboração social e orquestrada como única saída. 

 

Somos convocados a criar uma rede de segurança mundial contra um inimigo invisível que se manifesta em choque econômico, mortes e caos. De repente, a fome não é mais representada nos noticiários pelos zumbis refugiados de Lampedusa, mas por máscaras perambulando pelas ruas, por hospitais sem capacidade, por mortos empilhados e pela falta de tratamento e vacina. Nossa pequena aldeia primitiva ressurge, agora mais humana e genuinamente global.

 

Um sujeito microscópico, coroado e desaforado nos trancafiou em quarentena e nos obriga, como rei e senhor das horas, ao diálogo interior. Um vírus governa no momento em que, pela primeira vez em bilhões de anos de vida, estamos alterando o jogo da vida com a biotecnologia e a inteligência artificial. Assim como fizeram nossos ancestrais, caminhamos para dizimar mais da metade da fauna do planeta nos próximos 100 anos. Ironias biológicas escancaram então nossa pequenez e a Terra mostra seu esplendor em um apelo maternal de socorro. 

 

Se o que nos trouxe aqui como espécie foi a diversidade biológica e genética, não temos o direito de empobrecer as gerações futuras. Nós, homo sapiens, somos os únicos responsáveis pelo legado que dará sentido à vida daqui em diante. Para o surto haverá fim. Para o mal haverá cura. Para a fome, comida. Mas, atente-se: o medo que nos ameaça não pode ser recompensado por pão. Estamos desfalecendo não pelo vírus, não pela fome, mas por termos perdido a capacidade de ver, no Outro, um reflexo de si mesmos.


 

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