O novo normal é uma baita fake news

Por Edmar Bulla

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Como definir o novo normal? A resposta não vem fácil, mas me aventurei a tentar. Pensei: passamos os últimos 150 mil anos melhorando o cérebro, as necessidades humanas são as mesmas, formamos hábitos que atravessaram gerações… O que há de tão notável em 2020?

 

Pandemias como a Covid-19 bagunçam as emoções. A ânsia por solução cria dilemas: o antes voltará e o novo virá quando? Isolados socialmente, potencializamos isso numa guerra de narrativas perigosas. Até aqui, o novo normal pode ser apenas a sucessão de fenômenos cotidianos com suas crises, descrédito de instituições e polarizações fundamentalistas. Nada inédito, mas não me contentei.

 

Recorri a Zygmunt Bauman, filósofo polonês. Vivemos tempos líquidos. Tudo muda rapidamente e o individualismo nos acena. O novo normal entra na enxurrada de desprezo ao jornalismo e negação da Ciência. Sentimos a falta do abraço, mas não toleramos diferenças. O sexo virtual entra em cena em uma internet que hospeda celebridades efêmeras, tuítes, influencers e muita gente geralmente descolada da razão, pura ameaça à democracia. Terreninho fértil para a desinformação e ódio em redes sociais. Seria o novo normal uma fake news?

 

Busquei resposta na neurociência. Mesmo na modernidade líquida, novos hábitos podem perdurar, como defende o escritor Charles Duhigg. Por exemplo, cozinhamos há 1,9 milhão de anos. Assar, empanar, fritar ou colocar no micro-ondas não muda o hábito nem a necessidade. O micro-ondas não refundou o sistema de recompensa cerebral que funciona por gatilhos ancestrais de utilidade, sobrevivência e adaptação. Seria o novo normal um novo hábito?

 

Não satisfeito, recorri à História. Surtos epidêmicos aceleram a adoção de tecnologias, empurram humanos para a inovação e tecem hábitos. A obesidade, outra pandemia, foi gerada por sedentarismo ligado ao uso rotineiro de sapatos e cadeiras. Em 1300, para combater a Peste Negra, médicos prescreveram sapatos, que se tornaram comuns no Renascimento. Pés deformados criaram a necessidade de sentar e, então, a cadeira entrou na moda. Hoje usamos máscaras, mas essa moda permanecerá, assim como continuamos a usar sapatos e cadeiras? 

 

A necessidade de preservação da vida não mudou. Só mudou a maneira como fazemos isso com tecnologia e informação. Por exemplo, humanos de 1300 não sabiam que a Peste de Justiniano era causada pela mesma bactéria da Peste Negra. No século VI, a causa foi atribuída à promiscuidade da imperatriz Teodora. Passados quase 1600 anos, o governo brasileiro e Trump atribuem a Covid-19 a uma conspiração chinesa… Seria o novo normal um filho da ignorância?

 

Comecei a costurar isso tudo. A rotina de isolamento acentua nossos instintos, mas não tem o poder de recriar necessidades humanas, fazer brotar um novo consumidor, novo marketing ou novo qualquer coisa. Lançamos mão de ferramentas por utilidade, tal qual fizemos com a pedra lascada, o arado e o sapato e colocamos de escanteio o Blu-ray e o iPod. E os neurônios estão a nosso favor. Para o bem ou para o mal, a parte do nosso cérebro responsável pelos hábitos fica separada daquela que guarda a memóriaMesmo que alguém tenha algum dano cerebral que afete a memória, manterá intactos antigos hábitos. Memória é diferente de hábito e somos animais de memória curta.

 

É impossível definir novo e normal, porque eles só existem nas nossas fantasias morais. A indefinição do novo normal é sua face mais perigosa, porque aquilo que nada é pode ser qualquer coisa. Não podemos defendê-lo se não somos capazes de defini-lo. Na tentativa de encontrar respostas, assumo que novo normal é distração de curta duração, cortina de fumaça disforme. É cria de bots, da indústria de notícias falsas e de algoritmos que levam ao obscurantismo e à manipulação. Por conta da sequência-de-coisas-que-nunca-param guardamos o que é recorrente ou conveniente e isso nos distancia perigosamente da História. 

 

Para os míopes e insanos, novo normal pode pressupor que somos filhos de Adão e Eva, que negros e gays são raça inferior e que a ditadura é o melhor para uma nação. Mas, para a grande massa, novo normal tende a ser apenas o cumprimento de regras sanitárias. E disciplina não é lá o nosso forte. O nome disso nem é novo normal. É civilidade. Pena que já nos esquecemos.

 


 

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