Seremos mais solidários ou mais solitários?

Por Edmar Bulla

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A University College de Londres defende que 66 dias é o número mágico para que um hábito seja criado e mantido por anos. Os 11 milhões de habitantes de Wuhan, na China, retomaram atividades progressivamente. Foram 77 dias de rígido confinamento. Em teoria, o comportamento chinês foi forçosamente remodelado.

 

O novo coronavírus tem lá sua finalidade. Como tutor, ordena com dedo em riste: fiquem em casa e reflitam um pouco sobre o que vocês têm feito. Hoje, somos crianças de castigo no canto da sala, reescrevendo 100 vezes a mesma palavra. Descobrimos – e não foi pelo amor – que a cor não faz a raça, que o paletó não faz o executivo e que a globalização não cria uma aldeia. A pandemia chega em momento de necessária reflexão sobre propósito de vida e relações entre empresas e pessoas, governos e cidadãos, marcas e consumidores. Nada ou ninguém passará ileso, nem ideologias.

 

Se existe alguém se esbaldando nesta crise é a tal inovação. A covid-19 acelera radicalmente o nosso processo de transformação. Não há meio-termo ou opção de não entrar no jogo. Agora, você é ou não é, não há mais espaço para amadorismo. A pressão de tempo é uma das melhores ferramentas para o cérebro buscar soluções novas. Na abundância tendemos a ser menos criativos e inovadores. Pressionados, ativamos o mesmo mecanismo de situações de defesa: animais acuados criam alternativas rápidas de salvação.

 

Isolados sim, parados nunca! Nada é mais permanente do que a mudança, dizia o sábio Heráclito o filósofo grego. A cada instante, transformações químicas acontecem em nossas células. É o inevitável e o certeiro. A rotina de isolamento cria, sem cessar, ciclos de estímulos, hábitos e recompensas. E é dessa relação que será moldado o nosso futuro próximo.

 

Não seremos mais os mesmos. O mundo será outro. Nada será como antes. Além desses clichês, ninguém sabe como seremos ou como o mundo será, porque isso depende do assentamento de novos comportamentos e dos particulares códigos culturais. É bobagem tentar criar padrões globais fora das afirmações óbvias como a de que vamos usar mais a tecnologia para fazer reuniões. É mesmo?? Agora, tente adivinhar, seremos mais solidários ou mais solitários?

 

O World Giving Index, Índice Mundial da Solidariedade de nações ao redor do mundo, vem mostrando a queda sucessiva do Brasil: depois da 68ª posição em 2015, caímos para 75ª em 2016 e chegamos a 122ª em 2017, ficando atrás até mesmo da Venezuela, que alcançou o 107º lugar. Resultado da crise econômica, claro, mas também da construção histórica de crenças e valores enraizados em nossa realidade social. Myanmar e Indonésia, que brilham no índice, podem até inspirar, mas não necessariamente nos servirão de modelo. 

 

Também nos falta o senso de coletividade de países como Alemanha, que congrega a população de maneira coesa, clara, didática, harmoniosa e contundente, explicando como um mínimo aumento no número de casos poderia colapsar o sistema de saúde alemão, o que comprometeria a todos. Todos entenderam. No Brasil, Angela Merkel talvez fosse demitida.

 

Brasileiros entrevistados alegam que o isolamento é, antes de mais nada, para a autoproteção ou benefício próprio. O argumento do amor ao próximo, aqui, mostra-se ineficaz para convencer boa parte das pessoas a ficar em casa. Somos aprendizes neoliberais alimentando relações individualistas porque fomos educados para competir. E a competitividade é tão corriqueira que está nas pequenas coisas. Para os que se isolam, a reclusão doméstica é um caminho, sim, para a autorreflexão e a introspecção, mas em nossa cultura representa um risco às pseudo autossuficiência e supremacia em relação ao outro: o mais pobre, o mais negro, o não hétero, o que ganha menos, o que não tem aquele cargo.

 

O contexto não deixa de ser oportuno e generoso para a raça humana. Portanto, não se trata de negócios, de economia, de saúde, de política… A pandemia é sobre cada um de nós e sobre nós todos, é sobre a vida humana e nossa existência enquanto espécie, raça ainda jovem. O biólogo norte-americano Jared Diamond fez uma comparação didática sobre a nossa vida por aqui: em uma escala de horas, a raça humana habita o planeta há uns 30 minutos, enquanto os dinossauros permaneceram por 3 horas e meia. 

 

Apesar do seu tamanho, força e imponência, foram extintos. Negócios e economias são e serão natural e continuamente recriados. Mas com tantos erros acumulados e maus hábitos em relação a si mesmos, ao outro e ao planeta, o isolamento precisa fortalecer a humanidade nas pessoas. Esse é o único caminho para diminuir o risco de permanecermos por aqui bem menos tempo do que gostaríamos.

 


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